Sindifisco Nacional analisa PL 2337, que altera a tributação da renda

O Projeto de Lei 2337/2021, apresentado pelo governo, rompe com vários anos de inércia na correção da tabela do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), bem como na modernização da legislação da tributação sobre a renda. Embora possamos apontar aqui e ali ajustes a serem feitos, a proposta sem dúvida alguma caminha na direção certa. Promove uma real distribuição do peso da carga tributária, de forma mais progressiva, e se alinha a preceitos consolidados nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O modelo atual penaliza demais o trabalhador assalariado, já chamado a contribuir a partir de R$ 1.903,98. A faixa de isenção proposta tem correção de 31%, passando a R$ 2.500,00, e as demais de 13%. Ajusta ainda no mesmo percentual de 31,30% a parcela isenta dos rendimentos de aposentadoria e pensão de contribuintes maiores de 65 anos de idade. Serão quase seis milhões de brasileiros beneficiados só na primeira faixa, totalmente isentos.
A proposta do Sindifisco, publicada no site Tributologia, corrige a isenção para R$ 3 mil, deixando o restante da defasagem histórica para ser corrigida ao longo de 10 anos. Nessa proposta, constam também a eliminação dos Juros sobre Capital Próprio (JCP), a tributação dos dividendos e outras medidas contempladas na proposta do governo. Há uma distinção na ideia de tributação dos dividendos proposta pelo Sindifisco, baseada no modelo adotado na França, onde há uma redução da base de cálculo (considera-se que 30% já foi tributado na PJ) e o restante é alocado na tabela progressiva do IRPF. A isenção proposta seria de R$ 60 mil anuais para a pessoa física, independentemente se a empresa que distribui os lucros é micro e pequena empresa (MPE) ou não, o que beneficiaria, por exemplo, os pequenos investidores na bolsa de valores. O resultado seria uma arrecadação ligeiramente maior do que a proposta pelo governo, de forma progressiva, e não com alíquota flat de 20%.
Simplificação
Há no PL 2337/2021 medidas de simplificação muito relevantes no que se refere a investimentos no mercado financeiro, de forma a reduzir a tributação mais alta para os que deixam recursos investidos por prazo menor. Atualmente, a alíquota vai de 15% a 22,5%. Na proposta, uma alíquota flat de 15%. O ajuste é benéfico para o investidor e está alinhado com o preceito de justiça fiscal, já que em regra os investidores de menor renda fazem aplicações de curto prazo. No mercado de capitais, também no caminho da simplificação, está proposta uma equalização das alíquotas incidentes nas diferentes aplicações (bolsas de valores, de mercadorias e de futuros), seja day trade, à vista ou a termo. O período de apuração deixa de ser mensal, passando a trimestral.
A redução das alíquotas do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) está alinhada com o restabelecimento, após 25 anos, da tributação dos lucros e dividendos distribuídos. É amplamente conhecido o fato de que somente o Brasil, entre as grandes economias do mundo, adota a isenção integral dos dividendos. Esse modelo é o principal responsável pela regressividade da tributação da renda e pelo perverso fenômeno da pejotização, que tanto mal fez e continua fazendo para as relações de trabalho, para as contas da Previdência Social, trazendo desordem para a economia do país e disfuncionalidade para a tributação da renda.
Justiça Fiscal
A não incidência tributária sobre lucros e dividendos distribuídos faz com que seja uma prática corrente o sócio de uma empresa declarar que ganha, por exemplo, R$ 1.900,00 por mês a título de pró-labore – para ficar na faixa de rendimento isento de imposto de renda – e alguns milhões por ano de lucro distribuído pela empresa, também isento, por força da atual legislação. Em decorrência disso, é muito comum que um empresário que ganhe milhões de reais por ano não pague um centavo de imposto de renda, enquanto um empregado seu que tenha auferido, por exemplo, R$ 4.700,00 por mês, tenha seus rendimentos tributados à alíquota de 27,5%. Essa distorção pode ser vista no gráfico abaixo:

A alíquota efetiva média máxima, situada em 10,6% (faixa de 30 a 40 salários-mínimos), não parece tão alta. Mas cabe observar que ela é formada pela média entre assalariados pagando 20,1% e recebedores de dividendos pagando 5,7%. Nos dados atinentes aos recebedores de dividendos, estão contribuintes que recebem parte do rendimento tributável e parte como dividendos isentos. Se fossem apenas dividendos, a alíquota seria zero. A alíquota efetiva média cai fortemente a partir da faixa de 30 a 40 salários-mínimos por mês, em razão de haver, a partir dessa faixa, cada vez menos assalariados e mais recebedores de dividendos. Percebe-se que a almejada progressividade até existe, mas ela vai até a faixa dos 30 a 40 salários-mínimos e focada nos assalariados. A partir daí, a regressividade é a regra: quanto mais se ganha, menos se paga. Um assalariado na faixa de R$ 3 mil a R$ 5 mil por mês paga mais IRPF do que um milionário que ganha acima de 320 salários-mínimos por mês. É surreal, mas no Brasil, contrariando o bom senso ou qualquer argumento técnico, é verdade!
Os argumentos dos contrários, de que a tributação dos dividendos irá reduzir os investimentos, não se sustenta nem na teoria nem na prática. Do ponto de vista econômico, há no Brasil uma indução tributária à distribuição dos lucros, a custo zero. Isso conduz à falta de reinvestimento dos lucros nas atividades produtivas da empresa. A prática mundial demonstra que ao tributar os dividendos, cresce o reinvestimento dos lucros auferidos nas atividades da própria empresa, ou em outras das quais a empresa participe, impulsionando ganhos de produtividade em escala, gerando renda, empregos e crescimento econômico. Ainda, se os investimentos supostamente saíssem do Brasil, cabe perguntar: iriam para onde, se em todas as economias relevantes do mundo, inclusive nos países emergentes, essa é a prática aplicada de forma unânime.
Mas é correto incluir também as empresas do Simples Nacional? No ano-calendário 2019, um recorde de R$ 359,15 bilhões foram pagos em dividendos a sócios pessoas físicas de empresas do Lucro Presumido e Lucro Real, mais R$ 120,51 bilhões em rendimentos de sócios de microempresa (ME) ou optantes pelo Simples, totalizando R$ 479,66 bilhões integralmente isentos. Vale lembrar que o Simples Nacional deixou de ser, há tempos, apenas para os pequenos, ao permitir faturamento de até R$ 4,8 milhões anuais. Os valores recebidos por aqueles com rendimentos acima de 40 salários-mínimos por mês somaram 68,5% do total dos rendimentos isentos. Ou seja: não são os pequenos empreendedores, e não é pouco dinheiro. Ainda assim, o PL propõe uma generosa isenção de até R$ 20 mil mensais para os sócios de MPE. Do ponto de vista do Sindifisco, essa isenção deveria ser menor, de cerca de R$ 5 mil por mês. Uma isenção tão alta ao sócio de MPE contrasta com a do assalariado: R$ 20 mil versus R$ 2,5 mil por mês.
Medidas antielisivas
Além de outras medidas acertadas, como a eliminação da dedutibilidade dos Juros sobre Capital Próprio, o PL propõe medidas antielisivas modernas e alinhadas com as melhores práticas internacionais. Um dos maiores temas do contencioso tributário, há muitos anos, é a dedução da amortização do ágio (goodwill ou mais-valia) em incorporações societárias. Cerca de 30% da montanha de recursos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) trata dessa matéria, que agora finalmente está recebendo o tratamento jurídico adequado. Na incorporação, fusão ou cisão, a dedutibilidade do goodwill prevista no art. 22 da Lei nº 12.973, de 2014, será eliminada para eventos ocorridos a partir de 1º de janeiro de 2023. Um grande avanço!
Vale destacar o acerto de tornar obrigatória a apuração do lucro real para as atividades de exploração de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz. São inúmeros os planejamentos tributários que se utilizam indevidamente do lucro presumido para alocar rendimentos que deveriam ser tributados pela pessoa física. É esperada forte reação de alguns veículos de comunicação, os mesmos que conseguiram à época aprovar no Congresso Nacional o famigerado artigo 129 da Lei nº 11.196/05, que passou a considerar como pessoas jurídicas, para fins fiscais e previdenciários, prestadores de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural.
Os polêmicos fundos de investimentos fechados, uma espécie de investimento VIP usado pelos super ricos, por vezes grupos essencialmente familiares, finalmente terão o tratamento dos contribuintes comuns, com apuração anual conforme os rendimentos são auferidos, tal como ocorre nos fundos de investimento abertos.
Enfim, não é sem razão que boa parte dos tributaristas pagos para defender os interesses da elite econômica estejam agora bradando contra o projeto. É natural e esperado. Não quer dizer que todos que se opuserem ao projeto estejam defendendo os interesses da elite. Há também divergências genuínas e de cunho técnico.
Críticas
O projeto apresentado pelo governo (PL 2337/2021) traz consigo como linha mestre a simplificação e o respeito ao princípio da capacidade contributiva, objetivando, sem mexer na carga tributária global, redistribuí-la de forma mais justa e progressiva. Ainda, coloca o Brasil em convergência com as melhores práticas internacionais no combate à evasão fiscal e ao planejamento tributário abusivo. A redistribuição de recursos para as mãos das famílias de mais baixa renda trará, além de maior justiça fiscal, efeitos positivos para a economia. Não obstante isso, há aspectos que merecem atenção dos parlamentares.
O projeto propôs a tributação dos Fundos de Investimento Imobiliário (FII), enquanto manteve a isenção de outros: LCI, LCA, CRI, CRA. Do ponto de vista técnico, os outros investimentos, assim como o FII, devem ser tributados igualmente. Para preservar as expectativas de investidores, pode ser proposta uma tributação crescente, em fases, parcelada em dois ou três anos.
O limite para utilização do desconto simplificado, de 20% dos rendimentos tributáveis na Declaração de Ajuste Anual do IRPF, apenas para contribuintes com rendimentos tributáveis de até R$ 40 mil por ano, é um ponto fora da curva, considerando-se o escopo da justiça fiscal e da progressividade presentes no conjunto da proposta. Embora a correção da tabela beneficie a todos, há um contingente de contribuintes que não possuem despesas dedutíveis da ordem de 20% dos rendimentos e que acabarão não se beneficiando da correção na mesma medida. Alguns hipoteticamente podem inclusive pagar mais.
A justificativa no projeto foi de que o referido desconto simplificado se tornou atualmente injustificável em razão da simplificação no preenchimento da Declaração de Ajuste Anual do IRPF propiciada pelo avanço tecnológico incorporado pela Receita Federal em seus sistemas informatizados, a exemplo da declaração pré-preenchida. Entretanto, não há como desconsiderar que a declaração simplificada é também um benefício tributário, porque permite a dedução de 20%, limitada a R$ 16.754,34, havendo ou não as despesas dedutíveis.
Uma correção possível seria manter a regra atual para a declaração simplificada, e compensar o impacto previsto na arrecadação com a redução da isenção de R$ 20 mil mensais sobre os lucros ou dividendos recebidos por sócios de MPE, que tecnicamente não se justifica.
Por fim, é a oportunidade de extinguir o tratamento díspar dado ao investidor estrangeiro. Em resumo, enquanto os brasileiros pagam imposto de renda sobre os rendimentos advindos de seus investimentos, o estrangeiro ou não residente não paga. A benesse foi criada em 1995, nos artigos 78 a 81 da Lei 8.981. A lei foi adotada teoricamente para facilitar a colocação de títulos brasileiros no exterior, até porque se houvesse imposto, os juros teriam que aumentar para compensar. O recurso que entrasse por um bolso, sairia pelo outro. O tratamento acabou alargando-se e foi repisado na Lei 11.312, de 2016. O perfil da dívida pública mudou radicalmente nesse período, o Tesouro tem conseguido reduzir muito a participação de estrangeiros no endividamento brasileiro (dívida externa virou dívida interna), e a brecha legal passou a ser largamente utilizada por brasileiros travestidos de investidor estrangeiro. Alguns países ainda mantêm essa prática, como a Turquia, onde esses investidores são chamados de “estrangeiros de bigode” (alusão ao fato de todos os turcos usarem bigode).
O PL 2337/2021 não atacou esse privilégio indevido, e não foi por esquecimento. A posição está explícita na exposição de motivos do PL, item 18.2: “Além disso, foram mantidas as isenções atualmente concedidas de forma específica, por meio de lei, aos rendimentos auferidos por residentes e domiciliados no exterior”. Considerando-se o conjunto de medidas positivas propostas em relação aos fundos de investimento em geral, contemplando inclusive os fundos fechados, se esse ponto não for corrigido, a tendência é assistirmos a uma explosão de planejamentos tributários envolvendo pseudo investidores estrangeiros. A solução é simples: revogar o §1º do artigo 81 da Lei 8.981/1995 e os artigos 1º, 3º e 4º da Lei 11.312/2006. Mas é preciso disposição do Parlamento para não permitir que estrangeiros tenham tratamento tributário privilegiado em nosso país, e que um grupo seleto de brasileiros se utilize disso para não pagar os impostos devidos.