Proposta do presidente da Câmara pode aprofundar caos tributário no Brasil

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), anunciou na última sexta (18) que pretende restringir a atuação da Receita Federal na regulamentação de leis tributárias aprovadas pelo Congresso. Em evento organizado pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Lira disse que, com as mudanças previstas na reforma tributária, o Fisco não poderá mais regulamentar as leis e soltar resoluções para a sua aplicação: “A Receita não pode, não vai continuar com o poder de regulamentar, de soltar resoluções que fiquem legislando em cima da nossa legislação tributária, que é muito mais difícil”.

A manifestação do parlamentar expressa um diagnóstico correto e amplamente reconhecido, de que o sistema tributário brasileiro é essencialmente disfuncional, complexo e injusto, gerador de contencioso e de insegurança jurídica. O problema é que o remédio por ele apresentado tornaria o funcionamento do nosso moribundo sistema tributário muito pior.

Se as normas internas da Receita Federal fossem o problema, seria tudo muito mais fácil. Não precisaríamos mudar as Leis, muito menos a Constituição Federal. Bastaria corrigir essas normas, que detalham a legislação e por vezes a interpretam.

O poder-dever de regulamentação é inerente a qualquer órgão estatal, em qualquer lugar do mundo, e é fundamental no campo tributário para que haja unicidade na aplicação da Lei dentro Fisco. Imagine se cada Auditor-Fiscal do país, seja na fiscalização, ou ao julgar um recurso, ou ao responder uma solução de consulta apresentada pelo contribuinte, fizesse sua própria interpretação da Lei. Estaríamos, aí sim, diante de uma verdadeira balbúrdia tributária, deixando o contribuinte sujeito a uma inaceitável loteria jurídica.

Não se pode pensar com a simplicidade dos que não compreendem que normas legais, invariavelmente, demandam interpretação. Quanto mais simples, objetivas e bem elaboradas, menores chances de surgirem teses jurídicas conflitantes. Infelizmente, não é o caso das Leis no Brasil.

Em verdade, se há um protagonista na construção do que se chama, com razão, de manicômio tributário, ele é sem dúvida o Congresso Nacional, acompanhado das Assembleias Legislativas Estaduais. É o Legislativo quem cria leis tributárias tantas vezes ambíguas, falhas, omissas, geradoras de contencioso e de insegurança jurídica. Querer atribuir ao Fisco as mazelas dessa confusão generalizada é fugir do problema real.

Se o objetivo é de fato avançar na construção de um sistema tributário mais simples e justo, com vistas a reequilibrar o peso da carga tributária mediante uma efetiva progressividade, e colocar o Brasil na rota do desenvolvimento econômico, o Parlamento precisa começar com um eloquente mea culpa. É no Parlamento que uma infinidade de “puxadinhos tributários” são criados, inúmeras exceções e regimes especiais para atender esse ou aquele segmento econômico, sem falar nos benefícios fiscais que já ultrapassam 5% do PIB, e que em sua maioria não se sustentam do ponto de vista do retorno à sociedade.

Acaba sobrando para as administrações tributárias, federal e estaduais, a ingrata tarefa de organizar esse “salseiro” tributário, o que se dá por meio das chamadas normas complementares, como prevê o Código Tributário Nacional (Lei Complementar 5.172/66), em seu artigo 100, inciso I.

Se, por hipótese, a Receita Federal fosse proibida de emitir normas complementares, quem o faria em seu lugar? O Congresso Nacional iria se ocupar de todas as minúcias de cada procedimento relativo a cada tributo? Iria responder às soluções de consulta formuladas pelos contribuintes? Emitiria soluções de divergência para unificar o entendimento interno acerca da aplicação no caso concreto de dado dispositivo legal?

Ainda que isso fosse viável do ponto de vista prático, o que nem de perto é o caso, o Poder Legislativo estaria notadamente transbordando de sua competência e submetendo a seu controle um dos órgãos centrais do Poder Executivo, aquele responsável pela arrecadação e fiscalização tributária, atividades essenciais ao funcionamento do Estado. Seria ainda uma afronta ao Poder Judiciário. Ora, se estamos em um Estado Democrático de Direito, o contribuinte pode sempre buscar o Judiciário, a quem compete afastar determinada norma, se ela estiver contrariando a Lei.

Mas também cabe um mea culpa do Fisco? Cremos que sim. Os altos índices de sonegação, os planejamentos tributários abusivos e as práticas dos devedores contumazes, em boa parte decorrentes de uma legislação falha e leniente, moldou ao longo de décadas uma cultura de desconfiança por parte do Fisco. Não raro o contribuinte é tratado como suspeito, até que se prove o contrário. Essa cultura, queiramos ou não, se expressa na produção de normas complexas por parte do Fisco, partindo da premissa de que todos irão burlá-la.

O Sindifisco Nacional, acompanhado de outras entidades do Fisco estadual e municipal, vem defendendo já há algum tempo a necessidade de um novo paradigma na relação fisco-contribuinte. Precisamos de uma administração tributária que seja transparente e responsiva, capaz de estabelecer uma relação de confiança com o cidadão-contribuinte, baseada na previsibilidade e na segurança jurídica. O Fisco deve ser visto não como antagonista do contribuinte, mas como garantidor de que as regras tributárias serão aplicadas a todos indistintamente, impedindo a concorrência desleal entre os que pagam e os que não pagam os tributos devidos.

Nesse diapasão, temos defendido o alinhamento do Fisco brasileiro a diretrizes internacionais recomendadas pela OCDE e pelo CIAT, que privilegiam práticas de conformidade tributária, permitindo ao Fisco tratar os contribuintes de acordo com seu perfil e histórico. Para aqueles que desejam cumprir as regras tributárias, cabe ao Fisco auxiliar, facilitar, orientar. Por outro lado, aos que fraudam e buscam toda sorte de artifício para ludibriar o Fisco, deve pesar a força da Lei, inclusive com prisão para sonegadores. É assim que as administrações tributárias de países avançados funcionam: orientação e auto regularização na base da pirâmide, aos contribuintes de boa-fé; e medidas de enforcement, representadas pela máxima efetividade da lei e seu cumprimento, aos que decidirem sonegar.

Para que alcancemos esse novo paradigma na relação fisco-contribuinte, precisaremos do Congresso Nacional. As leis não permitem que o Fisco separe adequadamente o joio do trigo, e por vezes o bom contribuinte acaba tendo tratamento mais gravoso do que os faltosos. Caso clássico é o dos inúmeros “Refis”, ferramenta de pedagogia às avessas, que tem estimulado muitos contribuintes a não pagarem os tributos devidos, o que faz com que a carga tributária aumente sobre os ombros dos que já pagam muito. Afinal, alguém precisa arcar com as contas do nosso extenso condomínio chamado Brasil.

Se o presidente da Câmara quiser dialogar a respeito de propostas para o estabelecimento de uma relação de confiança entre o Fisco e os contribuintes, que tragam previsibilidade e segurança jurídica, o Sindifisco Nacional estará plenamente à disposição de seu gabinete. Temos convicção de que, se o Parlamento levasse em conta a opinião técnica das autoridades tributárias no momento de elaboração das Leis, muito da insegurança jurídica e do contencioso seriam evitados.

Cremos no diálogo entre o Fisco, o Parlamento e os setores econômicos como o melhor caminho para a construção de um sistema tributário moderno, justo e mais simples. Não será com hostilidade e demonstrações de força contra o Fisco que o país sairá do atoleiro tributário em que se encontra.

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