O sistema tributário e as contradições de Bolsonaro

“É impressionante como a Receita atrapalha o desenvolvimento do Brasil”. A frase, proferida ontem pelo presidente Jair Bolsonaro em palestra para empresários na Fiesp, debita na conta da Receita Federal todas as mazelas do nosso sistema tributário. Ao enunciá-la, o presidente, de maneira irrefletida, acaba contribuindo para ampliar o espectro de desinformação que ronda nossa sociedade.

O palavrório presidencial contra a Receita se insere num contexto mais amplo: apela à indignação dos brasileiros com as distorções de uma legislação tributária perversa e iníqua e com a percepção geral de não retorno social dos tributos, o que torna a relação custo-benefício dos impostos no Brasil uma das piores do mundo.

Mas assim como o direito canônico não é o papa e como a legislação penal não é o juiz, a Receita Federal não pode ser confundida com a legislação tributária. A copiosidade e o caos do sistema tributário brasileiro derivam diretamente da prolífica produção parlamentar na área – certamente, uma das mais abundantes entre todos os países. Ao longo dos anos, o Congresso Nacional, com a conivência do Executivo, fez do nosso sistema tributário um verdadeiro Frankenstein, um monstro pronto para sufocar a sociedade.

Nesse contexto, a Receita nada mais é do que um órgão de execução daquilo que está posto na lei e seus Auditores-Fiscais exercem atividade estritamente vinculada e não podem atuar um milímetro fora do arcabouço legal, em obediência ao próprio Código Tributário Nacional (Art. 142, parágrafo único: A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional).

Uma das principais ideias do economista austríaco Friedrich Hayek aponta para a diferença entre lei (ou direito) e legislação. Segundo ele, a lei (ou direito) é o conjunto de regras sociais espontâneas, não planejadas e não escritas (aquilo que a sociedade entende como justo e certo independentemente de estar registrado em qualquer código legal). Legislação, por sua vez, é aquilo que os legisladores materializam e impõem. Para ele, toda sociedade saudável é formada por uma combinação equilibrada das duas.

No Brasil, a fecundidade dos parlamentares na seara tributária fez com que, ao longo dos anos, a legislação engolisse a lei e o sistema fosse se distanciando gradualmente do conceito de justiça, até chegar ao ponto de saturação atual. Não custa lembrar que parcela expressiva dessa legislação foi criada para atender a segmentos exclusivos, para conceder exceções pontuais a determinados contribuintes, para conferir salvaguardas e benesses especiais a setores selecionados – quase invariavelmente aqueles com maior poder econômico e mais proximidade com o poder. Ou seja, montante não desprezível da legislação produzida serve para criar buracos, ou cavar túneis de fuga, nas próprias leis.

Não custa lembrar também que o atual presidente da República tem uma trajetória de 28 anos no Congresso Nacional, período praticamente coincidente com o da metamorfose esdrúxula que tornou o nosso sistema tributário nesse monstrengo que hoje conhecemos. Portanto, é pertinente questionar: o que Bolsonaro fez, enquanto legislador, para impedir que chegássemos na situação em que hoje estamos? Não estariam as digitais do presidente em diversos diplomas legais que ajudaram a degradar o sistema tributário?

A atividade exercida pela Receita Federal, a administração de impostos, está no cerne da existência e da sobrevivência do Estado. Esse instrumento de poder chamado tributo está na gênese da civilização tal qual a conhecemos. É um dos mais poderosos mecanismos criados para organizar a vida em sociedade e garantir segurança e estabilidade a qualquer nação. No Brasil, não pode ser diferente. Precisamos enfrentar os problemas que nos afligem (a exemplo da regressividade da carga tributária e do péssimo retorno social dos tributos) e exigir uma postura responsável e republicana dos que têm o poder para resolvê-los. E estes, ao contrário do que o presidente insinua, não estão na Receita Federal.

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