Editorial: tributos não devem financiar golpes

A democracia brasileira – que ainda engatinha em seu percurso de vida, se comparada a outras democracias mais sólidas e longevas, e que já sofreu trágicos reveses com períodos de interrupções – pede socorro! Estamos presenciando um respiro democrático que não completou ainda 40 anos, considerando o fim da última ruptura, em meados dos anos 80. De lá para cá, embora historicamente curto, o período sempre foi pontuado por episódios – sejam ações, discursos e intenções de alguns atores sociais – que buscam ou insinuam romper com aquilo que a Constituição Cidadã de 1988 definiu e regulou para a construção da nossa sociedade: o Estado Democrático de Direito.
Tais episódios tomam contornos ainda mais graves e de consequências potencialmente imprevisíveis quando são protagonizados por quem foi eleito e empossado via processo democrático, sob juramento de zelar e cumprir a Constituição. Mas, em vez disso, ousa atacá-la em seus princípios. Foi justamente o que ocorreu em cerimônia nesta segunda-feira (18), em Brasília, durante discurso do presidente da República, Jair Bolsonaro, para um público de ministros de Estado e de dezenas de embaixadores de vários países. No Palácio da Alvorada, além de lançar dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral brasileiro, ele afirmou reiteradas vezes a necessidade de a Justiça Eleitoral acatar as sugestões das Forças Armadas com relação ao processo eleitoral.
Ou seja, Bolsonaro atacou aquilo que, numa democracia representativa, transformou-se na base e no exercício democrático por excelência, que é o direito de o povo votar e de escolher legitimamente seus representantes. Sem mostrar provas, repetiu argumentos de fraude no sistema eleitoral que já foram exaustivamente rebatidos pela própria Justiça Eleitoral. No pior estilo do rei Luís XIV, Bolsonaro ensaiou dizer nas entrelinhas “O Estado sou eu”, ou mais precisamente “O Estado somos nós”, já que em vários momentos do seu discurso utilizou o “nós” para se referir à atuação conjunta com as Forças Armadas.
De uma só vez, a fala do presidente durante a solenidade afrontou a Constituição em princípios basilares como o Estado Democrático de Direito e a independência entre os poderes da República, já que pôs em xeque as próximas eleições, acusou de inseguro o sistema eleitoral que permitiu sua eleição e atacou ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. A atitude é grave e sem precedentes na história mais recente da nossa democracia, já que o chefe do Poder Executivo, utilizando-se da estrutura palaciana e do cargo a ele conferido legitimamente, mirou sua artilharia contra as instituições republicanas e contra o Estado brasileiro.
Nada mais aviltante e inaceitável que usar o aparato estatal, bancado pelos recursos recolhidos via tributos do povo brasileiro, para promover a desconstrução da nossa democracia, conquistada ao custo de tanto esforço e, até mesmo, de tantas vidas. O Sindifisco Nacional, entidade que representa os Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil, que têm papel determinante na construção desse Estado Democrático de Direito a partir da autoridade tributária e aduaneira legalmente constituída, repudia qualquer tentativa de ruptura democrática e afirma categoricamente que tributos não se prestam a financiar golpes.
Nossa categoria que, historicamente, tem um compromisso com a construção de um sistema tributário mais justo e equitativo – com o objetivo de reduzir as desigualdades sociais e de promover o bem-estar social – sempre esteve imbuída do propósito de fortalecer as instituições republicanas e democráticas, incluindo as administrações tributárias e, sobretudo, a Receita Federal. Portanto, nesse momento em que se faz necessária uma defesa veemente da democracia, o Sindifisco Nacional vem a público manifestar seu repúdio às declarações do presidente da República e reafirmar seu compromisso com a defesa da democracia e da Constituição Federal.