Desvio de função: um mal a ser sempre combatido

Em 1998, quando a Constituição Federal completou dez anos, o Brasil foi contemplado com um importante avanço em seu ordenamento jurídico. O princípio da eficiência na administração pública passou a integrar o artigo 37 da Carta Magna. Tornou-se, então, a exemplo dos demais mandamentos constitucionais, sujeito passivo de múltiplas interpretações e formas de cumprimento. Uma delas, sem dúvida, é evitar o desvio de função entre os agentes públicos.

Na estrutura da Receita Federal, a busca pela eficiência percorre caminhos bem delineados, que incluem a interpretação racional de outra peça-chave do arcabouço legislativo brasileiro: a Lei 10.593 de 2002. O inciso I de seu artigo 6º elenca as competências a serem exercidas, em caráter privativo, pelo Auditor-Fiscal. Ao lado da precedência aduaneira, esse é o núcleo central da autoridade do cargo, reafirmada na Lei 13.464/17. É o ponto fulcral que torna indispensável, do ponto de vista da coisa pública, a previsão de garantias e prerrogativas aos seus ocupantes, conferindo-lhes proteção especial do ordenamento jurídico.

Por hábitos culturais ou, simplesmente, por acomodação ante a falta de pessoal, ao longo dos anos tornou-se comum encontrar Auditores-Fiscais exercendo atividades administrativas, de apoio, de complexidade incompatível com os atributos requeridos daqueles que integram o cargo. A administração da Receita, em toda sua história, nunca implementou uma política efetiva para evitar o problema, os Auditores-Fiscais foram se acostumando (muitos optam deliberadamente por trabalhar na área meio) e a tendência acabou, inúmeras vezes, sendo usada como pretexto para erodir a autoridade do cargo, ora tentando transferi-la para administradores, ora tentando catapultar cargos de apoio e criar um ambiente interno de competição.

Quando o Auditor-Fiscal exerce atividades administrativas ou de apoio, não é somente o cargo que perde. É a própria Receita Federal e, mais, a sociedade brasileira. Não que haja qualquer demérito em tais funções. Todas são dignas e importantes para o bom andamento da máquina pública. No entanto, a melhor organização interna exige rigor na aplicação do princípio da eficiência. Excluindo situações excepcionais, ninguém vai encontrar médicos dirigindo ambulâncias ou juízes minutando decisões para outros juízes decidirem.

A responsabilidade dos Auditores-Fiscais ante a sociedade e o Estado é imensa – e isso se reflete na credibilidade e na remuneração do cargo. Se uma parcela de Auditores resolve abrir mão de suas responsabilidades para exercer atividades de apoio, em algum momento essa incongruência fica evidente e os fundamentos do edifício que sustenta a autoridade se tornam mais frágeis, com impacto em todas as dimensões que permeiam o cargo. A longo prazo, o efeito é desastroso.

O quadro de Auditores-Fiscais da Receita Federal vem nos últimos anos sofrendo decréscimo progressivo. Eventuais reformas podem piorar esse cenário, tornando o enfrentamento ao desvio de função ainda mais desafiador. Se isso ocorrer, cabe a cada Auditor-Fiscal resistir às pressões e mesmo às tentações. Afinal, grandes desafios são inerentes à própria condição de autoridade.

Concentrar-se nas atribuições privativas do cargo é fazer jus a essa condição. Nessa autoridade, orbitam as responsabilidades mais sensíveis da relação entre o Estado e o contribuinte. Assumi-las exige atenção, compromisso e respeito. Essa observância vincula toda a classe, especialmente quem exerce atribuições relacionadas à organização interna na Receita Federal. É uma forma de cumprir o mandamento constitucional e de honrar o dinheiro público.

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