Desconcentração do poder decisório: quatro anos de espera

Em março de 2016, o Sindifisco Nacional assinou com o Auditor-Fiscal Jorge Rachid, então secretário da Receita Federal, um termo de acordo referente à chamada pauta não remuneratória. Dentre outras questões, ainda pendentes, a cláusula sexta tratava da desconcentração do poder decisório. Dez dias após a assinatura do acordo, a Receita deveria encaminhar ao Ministro da Fazenda proposta de alteração normativa para desconcentrar o poder decisório de determinadas atividades. A partir daquele dia, iniciou-se uma campanha diária pela desconcentração, conduzida pelo Auditor-Fiscal Marcos London, hoje diretor de Estudos Técnicos do Sindifisco. Essa campanha completou exatos quatro anos no último sábado (4).

De toda a nossa pauta não remuneratória, a desconcentração do poder decisório é um dos itens mais importantes. Em meados da década de 1990, iniciou-se o projeto da alta cúpula da Receita Federal de concentração decisória nos cargos de chefia e funções gratificadas. Ano a ano, as atribuições privativas dos Auditores-Fiscais foram sendo paulatinamente transferidas para delegados, inspetores, superintendentes e chefes de setor e divisão. Até chegarmos em 2018 com 475 competências concentradas em ocupantes de cargos de chefia (gráfico 1).

De um lado, temos a autoridade do Auditor-Fiscal – baseada na Constituição Federal, no Código Tributário Brasileiro e nas Leis nº 10.593/02 e nº 13.464/17. De outro, a usurpação dessa autoridade por normas infralegais, como portarias e instruções normativas.

O inciso V do art. 37 da Constituição Federal determina expressamente que as funções de confiança e os cargos em comissão destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento, tornando evidente a impossibilidade de se atribuir atividades finalísticas dos órgãos a ocupantes de cargos de chefia.

A necessidade de isenção política e de preservação da moralidade e da impessoalidade no desempenho das atividades-fim do órgão é outro fator que deve ser observado, razão pela qual facilmente se constata que essas atividades não podem ser desempenhadas por servidores comissionados, diante da imprescindibilidade de tais requisitos.

O “chefe”, nesta condição, não goza de estabilidade na função, pois esta é de confiança e demissível ad nutum, situação que não deve ocorrer com a autoridade administrativa a que se refere o CTN e demais normas tributárias, pois as atividades cujo exercício é privativo do Auditor-Fiscal não podem ter caráter político e não podem estar sujeitas à instabilidade da função de confiança.

Após cerca de duas décadas da implantação desse modelo de concentração do poder decisório e diante do exponencial crescimento do volume dos trabalhos na Receita Federal, os próprios Auditores-Fiscais titulares de unidades acabaram reconhecendo a impossibilidade de suportar a pressão de assinar diariamente dezenas e, em certas localidades, centenas de despachos, despachos decisórios, ofícios, memorandos, atos declaratórios executivos, portarias, dentre outros atos administrativos. Passaram, então, a editar portarias de delegação de competência para devolver, localmente, o poder decisório aos Auditores-Fiscais – detentores originários das atribuições anteriormente usurpadas de forma ilegal e inconstitucional.

Desde os anos 2000 – quando as primeiras portarias começaram a surgir – até hoje, foram criadas centenas de portarias de delegação de competência. Atualmente, existem mais de 400 delas vigentes, editadas por alfândegas, delegacias, delegacias especiais, inspetorias e superintendências.

Essas portarias restituíram, em parte, o poder decisório aos Auditores-Fiscais, mas estão longe de resolver o problema, pois produziram uma verdadeira “gambiarra gerencial”. Em cada unidade surgiram soluções locais para resolver um problema nacional. A consequência é a improvisação pontual, a ausência de padronização de procedimentos e a desorganização da instituição.

Na ânsia de resolver problemas práticos do dia a dia, impostos por um modelo completamente descolado da realidade, delegados e inspetores desfizeram boa parte da concentração do poder decisório, chegando ao ponto de delegar competências que sequer eram suas, de acordo com as normas infralegais editadas no âmbito da Receita.

Após quatro anos de estudos, realizados por um grupo de Auditores-Fiscais criado no âmbito do CDS e coordenado por Marcos London, levantou-se que nada menos do que 868 competências privativas de Auditores-Fiscais estão concentradas em cargos de chefia. No entanto, na avaliação do grupo, apenas 55% delas devem ser desconcentradas. O restante deve permanecer com os chefes, seja porque se trata de edição de atos de caráter normativo, de decisão em recursos administrativos ou de matérias de competência exclusiva de detentores de cargos de chefia, conforme preceitua a boa doutrina (gráfico 2).

O extenso estudo constatou que, dos cerca de duzentos atos normativos que apresentam dispositivos concentradores de atribuições privativas dos Auditores-Fiscais em cargos de chefia, 80% estão na alçada do secretário da Receita Federal. Os 20% restantes estão fora da competência do titular do órgão (13% competem ao Ministro da Economia, 3% ao Presidente da República e 4% ao Congresso Nacional (gráfico 3).

Conclui-se, portanto, que a grande maioria dos problemas pode ser resolvida dentro da própria instituição. Ao tolher o poder do Auditor-Fiscal por mais de vinte anos, a Receita Federal vem sendo chamada a pagar a conta por enfraquecer a verdadeira autoridade tributária e aduaneira da União. Não é exagero dizer: Auditor-Fiscal fraco, Receita Federal fraca.

O desprestígio do órgão se apresenta de diversas formas: na redução dos prazos para cobrança administrativa especial no âmbito da Receita Federal e para encaminhamento de créditos para fins de inscrição em dívida ativa da União pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, estabelecida pela Portaria PGFN nº 33/18, e ratificada pela Portaria MF nº 447/18; na recente edição do Decreto nº 10.270/20, que instituiu Grupo de Trabalho de Avaliação Nacional de Riscos de Lavagem de Dinheiro, composto por representantes do Coaf, do Ministério da Justiça e do Banco Central do Brasil, sem sequer mencionar a Receita Federal; ou na publicação da Portaria nº 263/19, que instituiu Grupo de Trabalho para avaliar a redução da tributação de cigarros fabricados no Brasil, com a participação da Polícia Federal, da Secretaria Nacional do Consumidor e da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos, novamente sem a Receita Federal. Por fim, na redução de 36% no orçamento discricionário do órgão para 2020, derrubando-o ao mesmo valor nominal de 2008.

Para combater esse estado de coisas, o estudo da desconcentração do poder decisório apresentou, como resultado final, propostas de alteração de 160 atos normativos, que levaram em consideração sugestões de Auditores-Fiscais de todo o país. São mais de 400 laudas, entregues à Cosit em meados de 2019. No entanto, apesar de inúmeras reuniões com as coordenações em Brasília durante o ano de 2019, tudo o que a Receita fez foi reduzir de 475 para 454 as competências concentradas nos cargos de chefia. Não obstante o progresso alcançado, a velocidade com que o processo está evoluindo está longe de ser satisfatória.

Com as reiteradas reclamações do presidente da República quanto à miríade de instruções normativas e demais normas infralegais na Receita Federal, o órgão publicou, em dezembro de 2019, a Portaria RFB nº 2250/19, com o objetivo de revisar, revogar e consolidar atos normativos no âmbito da instituição. Com prazo para terminar todo o processo em maio de 2021, temos a oportunidade tão aguardada de revisar todo o cipoal normativo do órgão e extirpar de vez a concentração ilegal e inconstitucional do poder decisório nos cargos de chefia.

O passo inicial foi dado pela Cosit, que compilou todos os atos normativos vigentes na instituição e que serão agora revisados. Só de instruções normativas são 1.780! No início de fevereiro, a Cosit entregou a cada subsecretaria, de acordo com suas competências, uma relação de normas para exame. Cabe agora a cada subsecretaria repartir com suas respectivas coordenações e divisões o trabalho de revisão.

Como o trabalho de revisão irá abranger centenas de Auditores-Fiscais em todo o país, será impossível que um único Auditor-Fiscal acompanhe a evolução da demanda junto à administração da Receita Federal. Por isso, foi criada uma comissão temporária, dirigida pelo diretor de Estudos Técnicos, Marcos London, para participar das reuniões setoriais com a administração da Receita. Da comissão farão parte diretores da própria Direção Nacional e outros filiados. A Direção Nacional irá prover todo o custeio de hospedagens, deslocamento e alimentação para que os participantes possam se fazer presentes junto aos responsáveis pela avaliação do estudo.

Marcos London formou a equipe, que será dividida por temas e receberá todas as informações a respeito do estudo realizado até agora. Com a possibilidade de um “revogaço” de normas no Executivo, o diretor avalia como única a oportunidade de a Receita Federal resolver a questão e devolver aos Auditores-Fiscais suas atribuições legais.

Em razão disso,  no dia 19 de fevereiro, Marcos London e o vice-presidente Ayrton Eduardo de Castro Bastos reuniram-se com os Auditores-Fiscais Decio Rui Pialarissi, subsecretário-Geral,e José de Assis Ferraz Neto, assessor do gabinete, com o fim específico de apresentar o trabalho atualizado sobre a necessária desconcentração do poder decisório.

Precisamos mais do que nunca que a cúpula da Receita compreenda que essas medidas irão valorizar não apenas o cargo efetivo de Auditor-Fiscal, mas a própria Receita Federal.

A expectativa é que, com a desconcentração do poder decisório, uma nova cultura se dissemine na Receita Federal. “Somente por meio da devolução de responsabilidades à autoridade do órgão, haverá motivação no desempenho de suas atribuições legais, aumentando a produtividade e impactando diretamente os resultados esperados pela sociedade”, finaliza London.

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