Artigo: Legado tributário

Publicado originalmente pelo jornal Estadão, em 09 de abril de 2021
Por Paulo Roberto Ferreira (*)
Lançado recentemente no Brasil, o livro “Uma terra prometida” de autoria do ex-presidente norte-americano Barack Obama, traz um longo relato a respeito de detalhes e reflexões sobre seu primeiro mandato. Obama se enxerga como um reformista, um conservador em termos de visão política. No livro, ele narra as dificuldades na articulação política para levar à frente a aprovação de suas promessas de campanha, entre elas o programa de seguro saúde conhecido como “Obamacare”.
Como se pode perceber, mesmo com prestígio e popularidade em alta as dificuldades e os obstáculos são uma constante na vida política. Por aqui não é diferente. Após a dança das cadeiras nas Mesas da Câmara e do Senado Federal, o agravamento da crise causada por novas variantes do coronavírus e decisões no âmbito judicial com reflexos no meio político é preciso que a sociedade num esforço consciente expresse aos seus representantes a necessidade da deliberação dos temas urgentes como a vacinação em massa, como também dos importantes com reflexos no pós-pandemia. Um desses temas, sem dúvida alguma, trata da reconstrução do Sistema Tributário Nacional.
Com o propósito de contribuir com esse debate, o Sindifisco Nacional, entidade que representa os Auditores-Fiscais da Receita Federal, inaugurou o site Tributologia – www.reformatributaria.org – onde apresenta uma plataforma cinco eixos para uma Reforma Tributária efetiva: mais justiça, menos burocracia, mais agilidade, menos privilégios e mais fiscalização.
Mais justiça: segundo um relatório econômico publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2018, o Brasil na contramão do que se pratica em países desenvolvidos, possui 60% da sua carga tributária baseada na tributação sobre o consumo. O cenário se agrava quando se constata uma defasagem acumulada na tabela do Imposto de Renda Pessoa Física, considerando os índices de inflação do país, de 113,09%. Entre as alternativas para se corrigir essas situações está a revogação da isenção sobre a distribuição de lucros e dividendos no Brasil. Dados divulgados pela própria Receita Federal, com base no crescimento do PIB entre 2018 e 2019 e no IPCA acumulado no período, mostram que a medida poderia resultar numa arrecadação superior à casa dos 50 bilhões de reais.
Menos burocracia: segundo o relatório “Doing Business 2020”, do Banco Mundial, o Brasil é o país que mais exige tempo para pagamento de tributos (em média, 1501 horas anuais), muito acima da média da OCDE (158 horas anuais) e até mesmo de países da América Latina (317 horas). Os números são assustadores. Entre as alternativas para se corrigir a situação está a proposta de unificação dos tributos sobre o consumo e a racionalização das obrigações burocráticas, como declarações e escriturações contábeis. O Governo chegou a apresentar, em julho do ano passado, o PL nº 3887/20 criando a Contribuição de Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%, substituindo o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins). O projeto, à época, foi muito criticado por dar a percepção de aumento da carga tributária, além de não atacar o cerne do problema que seria uma unificação mais ampla envolvendo tributos estaduais e municipais. No Congresso Nacional, as PECs 45 e 110 que receberam maior apoio entre os parlamentares, até o presente momento, também não avançaram.
Mais agilidade: a morosidade do contencioso administrativo tributário somada à possibilidade de se recorrer das decisões na justiça pode postergar a realização de um crédito tributário por décadas. Para se ter uma ideia do tamanho do abacaxi, a presidente do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), Adriana Gomes Rêgo, revelou que em abril de 2018, o conselho tinha em discussão 119 mil processos que totalizavam algo em torno de R$ 614 bilhões em créditos tributários. Fora os valores mencionados, tramitam no judiciário um sem-número de processos bilionários, geralmente patrocinados por famosas bancas de advogados representando grandes empresas. Somado a todas essas questões, uma recente alteração legislativa que suprimiu o voto de qualidade no CARF, contestada por meio da ADI nº 6399, segue em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Dada a relevância dos valores em questão é preciso se construir um macro-processo integrado e racional para a cobrança desses créditos.
Menos privilégios: em dezembro de 2017, a Receita Federal publicou um Estudo de Impacto dos Parcelamentos Especiais, os famosos Refis, onde demonstrou que as renúncias estimadas desde 2008 até aquele ano montavam algo em torno de 176 bilhões de reais. No final do relatório, as considerações da instituição deixam claro os reflexos negativos na arrecadação tributária em decorrência dos reiterados programas especiais de parcelamento: “A certeza do próximo programa e a consequente possibilidade de rolar a dívida é mais atrativa do que qualquer redução oferecida.” De 2008 a 2017 foram nove programas. Além deles, temos as bilionárias renúncias fiscais. A renúncia estimada pelo Governo nesse ano é de R$ 307,9 bilhões. Dessa forma, os casos em que os benefícios não se traduzem em empregos diretos à população e servem apenas para ampliar os lucros de grandes empresas precisam ser revistos.
Mais fiscalização: para que o Estado se mantenha de pé, honre seus compromissos e devolva à população realizações em forma de políticas públicas é necessário cuidar da sua galinha dos ovos de ouro. Paradoxalmente, o que se viu recentemente por parte do próprio Executivo foram sucessivos cortes orçamentários na Receita Federal. Para se ter uma ideia, no ano passado, houve um corte da ordem de 1 bilhão de reais que representa 35,7% em relação ao valor executado no ano de 2019. Outra medida que atentou contra o órgão foi a tentativa de extinção do Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (FUNDAF), no contexto da deliberação da PEC186, no Congresso Nacional. A edição de uma Lei Orgânica e de Leis que permitam estimular os bons contribuintes resultariam numa atuação mais eficaz da administração tributária.
Em um cenário de crise sanitária, uma das maiores já vivenciadas mundialmente, surge uma oportunidade de mudança para reconstruir o nosso pacto social. A pergunta que fica é: podemos deixar um legado de um sistema tributário mais justo e racional para a população brasileira? Sim, nós podemos!
*Paulo Roberto Ferreira é Auditor-Fiscal da Receita Federal e diretor do Sindifisco Nacional.