A face mais sombria do desvio de função

Toda estrutura organizacional, para funcionar correta e efetivamente, necessita de uma hierarquia clara e bem definida. Mas esta, por si só, não basta. A distribuição de poderes deve, também, ser dotada de legitimidade, formal e moral, para o exercício de cada função. Neste sentido, quando um Auditor-Fiscal se submete hierarquicamente a um cargo de apoio, independentemente do contexto, estamos diante de uma relação de subordinação ilegítima, que corrói a imagem do órgão e a credibilidade do cargo.
Do ponto de vista formal, a legitimidade da precedência do Auditor-Fiscal sobre os cargos de apoio na Receita Federal, em qualquer circunstância, é amparada pelas atribuições, responsabilidades e autoridade que a lei, em sentido formal, lhe destina. Em observância ao princípio da reserva legal, atos normativos, no âmbito da Receita Federal, jamais podem se sobrepor a essas leis. Instruções normativas, resoluções e portarias que invertam ou confundam os papéis de Auditores-Fiscais e ocupantes de cargos de apoio são, portanto, absolutamente ilegais, além de representar malversação de recursos públicos, que precisa ser combatida na raiz.
Em sua vertente moral, a ilegitimidade reside na não diferenciação clara entre atribuições decisórias e operacionais. Por muito tempo, isso gerou investidas que visavam usurpar atribuições típicas de autoridades fiscais, transferindo-as a cargos de apoio, com a pretensão implícita de ascensão funcional. Era uma forma “astuta” de tentar contornar a Súmula Vinculante 43, que demonstrou a incompatibilidade da ascensão com o ordenamento constitucional.
Ocorre que o bônus sempre tem seu ônus correspondente. Ao assinar a posse e entrar em exercício, o Auditor-Fiscal será confrontado por suas responsabilidades legais como autoridade tributária e aduaneira. O peso da instituição está sobre seus ombros, quer queira, quer não. É sua obrigação – ou fardo, a depender da interpretação – exercer a autoridade, tomar decisões. Desse modo, aceitar ser alocado em atividades meio ou funções de apoio, por meio de gambiarras administrativas, é desrespeitar o cargo e desonrar a confiança depositada pela sociedade, que, através do legislador, lhe atribuiu o exercício das atividades finalísticas da Receita Federal.
Em tais funções subalternas, os Auditores-Fiscais acabam ficando sujeitos a serem chefiados por ocupantes de cargos de apoio. Aqueles que, passivamente, aceitam se submeter a isso compactuam com a face mais sombria do desvio de função, em renúncia à sua importância estratégica para o Estado brasileiro. Prestam um duplo desserviço à classe e ao órgão, erodindo a essência do cargo, na contramão de sua valorização.
Caso a administração imponha esse tipo de situação, os Auditores-Fiscais devem se recusar a aceitá-la e reportar o fato, imediatamente, ao Sindifisco Nacional, para que sejam tomadas as medidas cabíveis. O desvio de função, assim como o desrespeito à autonomia técnica do Auditor-Fiscal, deve ser tratado como o que realmente é, uma aberração administrativa, e precisa ser combatido e desmontado na origem.