A armadilha por trás da aprovação da PEC 10
Os Estados Unidos da América possuem uma única Constituição, de 1789, com um total de 27 emendas ao longo de mais de 230 anos. O Brasil está em sua 7ª Carta Magna – 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988 -, e já alterou a atual 105 vezes. Isso mesmo, foram 105 emendas à constituição em quase 32 anos. Nos primeiros dez anos de vigência (até 1998), foram 20 emendas. No decênio seguinte (1999 – 2008), mais 37. Mais dez anos (2009 – 2018), e mais 42 emendas. No ano de 2018 um fenômeno: um ano inteiro sem emendas à Constituição, em razão da intervenção federal na área de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro. Em 2019 foram seis emendas, nos últimos seis meses do ano.
Essa profusão de emendas ao longo dos anos sempre teve que obedecer ao rito previsto nos Regimentos Internos da Câmara e Senado. Esse processo legislativo envolve a designação de relator pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), responsável por elaborar o parecer de admissibilidade da Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Após essa etapa, o relatório precisa ser votado primeiro pela CCJ. Na sequência, geralmente acompanhada de audiências públicas, é constituída a Comissão Especial, que analisará o mérito da PEC, com prazo de 10 sessões para apresentação de emendas. Após a apresentação do relatório, podem ser destacadas pelos Deputados as emendas não aproveitadas pelo relator, bem como os pontos para exclusão do relatório. Uma vez votados o relatório e os destaques no âmbito da Comissão Especial, o texto segue para o plenário na Câmara e é submetido a dois turnos de votação, com 5 sessões de interstício entre eles, momento em que os partidos ainda poderão apresentar novos destaques a serem votados em separado. No Senado, o rito se repete, na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, e depois no plenário do Senado, também com dois turnos de votação.
Esse ritual tem duas razões principais: a primeira é permitir um amplo debate, tanto entre os parlamentares, quanto entre o Parlamento e a sociedade; a segunda é proteger o texto constitucional de iniciativas oportunistas. No caso de um Projeto de Lei, o presidente da Câmara pode colocar na pauta um tema com regime de urgência, designar um relator de plenário, suprimir a formação de todas as comissões e resolver, em uma tacada, alterar uma Lei. Com a Constituição não é assim. Ou melhor: não era.
No caso da PEC 10, apelidada de Orçamento de Guerra, a tramitação que costumava levar alguns meses de discussão foi resolvida, na Câmara, em apenas algumas horas. Embora seja consenso entre os especialistas que os temas relacionados à liberação de recursos para o enfrentamento da crise do coronavírus não dependam de emenda à constituição, nem as questões orçamentárias relacionadas à regra de ouro, aproveitou-se o contexto de urgência para tratar desses temas por meio do caminho, teoricamente, mais tortuoso: uma proposta de emenda à Constituição.
Apoiando-se na situação excepcional vivenciada pelo país em razão da epidemia do coronavírus, e informando haver acordo com a maioria dos líderes, Rodrigo Maia protagonizou, no dia 1º de abril, uma verdadeira reviravolta na tramitação de uma PEC. Em plena sessão virtual, com apenas alguns poucos Deputados Federais presentes, o presidente da Câmara designou o deputado Hugo Motta (Republicanos/PB) como relator da matéria. A admissão foi feita oralmente (menos de 10 segundos) pelo deputado, que dessa forma fez as vezes da CCJ, a principal e maior das comissões permanentes, com até 66 membros. Enquanto isso, entre os poucos presentes, alguns deputados pediam para ter acesso ao texto. O relatório da PEC 10, admitido oralmente por um relator designado em plenário, não estava sequer no sistema da Câmara. Em seguida, Rodrigo Maia deu dez minutos para a apresentação das emendas. Isso mesmo: dez minutos. Já eram 22h30. Muitos deputados pediram para que as emendas pudessem ser apresentadas no dia seguinte, mas o presidente da Câmara prosseguiu com o atropelo. As emendas foram apresentadas, ignorando-se o necessário apoiamento de 171 assinaturas. O mesmo relator, deputado Hugo Motta, dessa vez fazendo as vezes da Comissão Especial de mérito, apresentou um texto substitutivo e de pronto rejeitou todas as emendas. Pela regra disposta no Regimento da casa, a Comissão Especial tem 40 sessões ordinárias para analisar o texto. Dado o avançar da hora, a sessão foi encerrada.
As emendas 4 e 5, do partido Novo, tratavam de redução de até 50% dos salários dos servidores públicos, assunto que norteou as manifestações dos sindicatos de servidores até a votação final da matéria na sexta-feira (3/4). A PEC 10 foi votada em dois turnos seguidos, e aprovada pela Câmara. As emendas 4 e 5 não entraram em pauta.
O não acolhimento das inescrupulosas emendas do partido Novo, que almejavam a redução salarial dos servidores públicos justamente quando o Estado precisa se mostrar mais presente do que nunca na vida do cidadão, é evidentemente uma boa notícia. Em plenário, a redução salarial foi defendida não apenas pelo Novo, mas pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP), que se manifestou ao mesmo tempo a favor da penalização do servidor e contra a tributação das grandes fortunas. Segundo ele, “bilionários e milionários fazem grandes caridades por todo o país”.
O que talvez nem todos tenham percebido é que, por trás dessa cortina de fumaça, enquanto as entidades de classe esbravejavam com o partido Novo, foi criado um precedente extremamente perigoso, não apenas para os servidores públicos, mas para toda a sociedade.
É altamente temerário fazer alterações no texto constitucional em situações de exceção. Se a intervenção na área de segurança no Rio de Janeiro ensejou a suspensão de todas as PEC em tramitação durante o ano de 2018, agora existem muito mais razões, tratando-se de uma situação de calamidade pública nacional. É impensável que em uma sessão atípica, com poucos parlamentares presentes, ao arrepio do Regimento Interno e com sucessivos atropelos de condução, seja aprovada a toque de caixa uma emenda à Constituição, ainda que fosse louvável seu objetivo. No caso, ainda não se justificou porque foi escolhido o caminho da emenda à constituição, o que permite inferir que se buscava não só a aprovação de matéria relacionada à crise do coronavírus, mas do rito relâmpago para emendar à Constituição.
Há ainda elementos estranhos, como os parágrafos 9º e 10º, que autorizam o Banco Central a operar no mercado secundário de títulos privados, com recursos do Tesouro Nacional. A falta de nexo tem gerado ilações de que essa medida pode se transformar em uma espécie de socorro aos bancos sobre títulos podres, como ocorreu nos EUA na crise do subprime, em 2008. É injustificável o açodamento na discussão de uma proposta que pode onerar ainda mais os cofres públicos.
Nessa semana caberá ao Senado avaliar a PEC 10, e se espera que nem todos os senadores caiam na injustificável chantagem do Governo: se não aprovar uma PEC, não posso pagar os necessitados da crise. Isso é uma falácia! A liberação de recursos, a criação do Comitê de Gestão da Crise, a exceção à regra de ouro, todos esses pontos se resolvem por Lei Complementar, Medida Provisória ou Projeto de Lei, e Decreto.
A sociedade precisa que o Senado demonstre sabedoria e um olhar de longo prazo. Renunciar ao devido processo legislativo para alterar a Constituição é baixar o último escudo da cidadania. Não sabemos que outros temas serão tratados, sem que a sociedade civil possa interagir e ponderar com os parlamentares. As próximas vítimas podem ser os precatórios, inclusive os alimentares, de idosos que esperam há anos o recebimento de seus valores. Podem ser o exercício pleno da advocacia, a liberdade de imprensa, a própria atividade parlamentar e, claro, os servidores públicos, escolhidos pelo Governo e alguns partidos políticos como bodes expiatórios de todos os males da nação, inclusive da atual pandemia, justamente quando os brasileiros mais precisam da prestação de serviços públicos essenciais à população.